Não só faltam médicos. Faltam médicos negros.


No dia 8 de Julho o Governo Federal anunciou uma medida para diminuir o sucateamento a que está exposto o Sistema Único de Saúde: o programa Mais Médicos. O programa pretende levar médicos, estrangeiros e brasileiros, para locais de escassez ou ausência de profissionais da saúde. O próprio edital, publicado no Portal da Saúde, soluciona diversas dúvidas a respeito da medida:

1) Faltam médicos no Brasil? 
Sim, nos últimos oito anos o número de postos de emprego formal criados para médicos ultrapassa 
em 54 mil o de graduados em Medicina no País, contra 93 mil profissionais formados.

2) O maior problema é a distribuição?
Não somente. São dois problemas básicos nessa área: o número insuficiente de médicos e a má 
distribuição desses médicos no território nacional. O Brasil possui 1,8 médicos por mil habitantes. Além da falta de profissionais, o país sofre com uma distribuição desigual: 22 estados possuem número de médicos abaixo da média nacional e cinco deles com menos de 1 médico por mil habitantes - Acre (0,94), Amapá (0,76), Maranhão (0,58), Pará (0,77) e Piauí (0,92). Mesmo em estados com maior relação de médicos por habitantes, como é o caso de São Paulo, conta com uma relação muito menor em alguns municípios, por exemplo Registro (0,75), Araçatuba (1,33) e Franca (1,43).


Só que o problema é mais embaixo e a ferida dói mais do que gostaríamos de admitir.
Mais de 50% da população brasileira é composta por negros e pardos. Como já se sabe, fazemos parte de um país incrivelmente miscigenado e mais incrivelmente ainda racista.

Na carreira de medicina, somente 2,66% dos concluintes em 2010 eram pardos ou pretos.
Nesse mesmo ano, de um total de mais 267.000 universitários concluintes que prestaram o Enade, só 16.000 se declararam pretos ou pardos.

Nos três cursos mais concorridos da USP (medicina, engenharia civil em São Carlos e publicidade e propaganda), só 9,5% se declararam pardos contra 78,3% de brancos.
Nos dez cursos mais concorridos do processo seletivo 2013, apenas 4 (!!!!) pretos se matricularam.
Ciências médicas em Ribeirão Preto: um preto entre 103 calouros.
Jornalismo: um de 66 alunos.
Design: um entre 43 alunos.
Bacharelado em artes cênicas, a cena se repete. Só um aluno preto.

A matemática não mente. Apesar de uma gradual inclusão de políticas afirmativas de cotas, é possível observar e sentir o abismo que um negro tem que enfrentar desde o momento que começa seus estudos até o êxtase de ingressar na faculdade. Entre os 14 milhões de brasileiros com mais de 15 anos que são analfabetos, 30% são brancos e 70% são pretos ou pardos.


Na medicina, um curso por excelência voltada para a burguesia desde tempos imemoriais, é mais fácil ainda ver a discrepância de alunos brancos e negros.

Quantas vezes você já foi atendido por um médico negro? 
Quantas vezes em clínica particular, ou no SUS?


Usar as cotas como política de inclusão para uma classe historicamente prejudicada é uma medida paliativa - mas importante - na luta por direitos iguais. Mas agir na fonte do problema é mais do que necessário, visto que passar na faculdade de medicina da USP não depende só da "sua fé e força de vontade", ou pior ainda, do "seu mérito e capacidade de lutar".
Imagine o seguinte quadro: Mulher negra, que vive na periferia, trabalha mais de 8 horas por dia pra ganhar pouco menos que um salário mínimo. Não tem condições de pagar um curso pré-vestibular pros filhos, que dirá uma faculdade. Portanto, os filhos trabalham também, desde cedo, pra pagar as contas (o aluguel na periferia é quase o valor do salário mínimo atual, cerca de 700 reais). A educação pública é ineficiente, pobre, mal fundamentada, com péssima gestão e muitas vezes, péssimos profissionais. Trabalha-se pra se manter, comprar seus bens, garantir sua casa, sua refeição. Essa é a imagem com variáveis de mais de 50% da população de pretos e pardos no país.
A origem do problema é histórica. Desde o século 19 até a última década do século 21 não se investe em políticas públicas para negros no Brasil, porque as "mamatas", "dar o peixe ao invés de ensinar a pescar", "injustiça contra os brancos", como costumamos escutar hoje em dia a respeito das cotas, foram relegadas à população européia.


Manifestantes ligados ao Sindicato dos Médicos do Ceará protestam durante a passagem de médicos estrangeiros.  Fonte: Reprodução FOLHA
A vinda de médicos estrangeiros - sejam eles cubanos ou não -, pra atender populações carentes no país, pra ajudar a solucionar o caos da saúde pública no Brasil é, assim como a política de cotas, paliativa mas necessária até surtir efeito. Mas a vinda desses médicos - que além de tudo são, entre muitos, negros -, há de causar mais do que comoção ou revolta. Vale pra expor assustadoramente o retrato do nosso país, escancarar uma ferida mascarada há anos, onde a meritocracia serviu para brancos e pro resto da população fingir que "racismo não existe", vide o comentário da jornalista Micheline Borges, a seguir.


Fonte: Reprodução Facebook


Que venham mais médicos. Que venham mais médicos negros. Que um dia seja sorte nossa que as médicas tenham "cara de empregada doméstica", o que provavelmente pode significar que pras empregadas domésticas, uma nova chance de vida e de sonho está por vir.

(Sobre a polêmica "quebra da santa" na Marcha das Vadias RJ)

Fonte: AFP. "Marcha das Vadias - RJ"


“Uma santa para cada mulher queimada na inquisição. Uma santa para cada vítima de AIDS. Uma santa para cada homossexual agredido em nome do cristianismo. Uma santa para o estigma social colocado nas religiões de matriz africana pelo cristianismo. Uma santa para a relação íntima entre a Igreja e os governos fascistas europeus. Uma santa para a guerra santa. Uma santa para cada livro queimado. Uma santa para cada bilhão de dólares acumulado. Uma santa para cada criança vítima de um padre pedófilo.“


A reação do oprimido não é a mesma coisa que a violência do opressor.


Temos aqui uma Igreja Católica que há mais de dois mil anos oprime, ofende e mata mulheres. Oprime, ofende e mata homossexuais. Oprime, ofende e mata quem não aceita seus dogmas.
É muito benevolente, é muito bonito e é muito católico reproduzir o discurso de que "é preciso respeitar pra ser respeitado". Mas essa é uma falsa simetria. 

Afinal, o desrespeito por parte da Igreja reverbera há mais de dois mil anos. 
Será que eu tenho que sorrir e acenar pra um católico que impede os meus direitos essenciais?

O meu feminismo é contra a Igreja, sim. Pois é essa igreja que me coloca como submissa e e privilegia o homem. Que tira o direito de escolha sobre meu corpo, minha sexualidade, meu útero.
E me deprime perceber que as pessoas se comovem mais com a imagem de uma santa quebrada que representa uma religião do que com uma pessoa que é assassinada em nome dessa religião.
Nosso conceito de fé é muito medieval. Sua fé é particular, tanto é que você pode ser católico e usar camisinha (DEVE). Mas os católicos tem um líder da igreja que diz que isso é pecado. Contradição? O papa que eles veneram traz à tona toda a medievalidade de uma instituição que não funciona mais (mas que ainda arrecada muito dinheiro...)

Assim como quebraram uma santa, há milhares de séculos umbandistas tem tido seus terreiros destruídos, suas oferendas chutadas (o que aliás, virou piada nas mãos do opressor), evangélicos são "eternos inimigos" e as outras religiões são todas do capeta. E... NÃO. "Chutar uma macumba" e quebrar uma santa não equivalem ao mesmo ato de desrespeito à religião. Porque uma religião tem sido historicamente superior à outra. É como fazer uma marcha contra o imperialismo e reclamar se queimarem uma bandeira dos EUA. É como ir numa manifestação contra um governo corrupto e não se revoltar contra os políticos que operam esse sistema.

É impossível protestar sem que o opressor se sinta ofendido.

E ao contrário deles,
essa atitude não matou ninguém.



Porém, no entanto, todavia...


Cheguei à conclusão de que, de qualquer forma, não foi uma atitude política inteligente. E toda e qualquer Marcha (ou pelo menos, a das Vadias) tem um viés político muito bem fundamentado.


A luta feminista é pelo fim da opressão contra as mulheres, seja essa opressão psicológica, sexual, comportamental, etc. E por mais que eu tenha minha crença de que religiosidade é bobagem, muitas mulheres levam à ferro e fogo o significado que uma santa de gesso possui. (E também santas que aparecem talhadas em pedaços de madeira. Ou jesus cristos que aparecem nas nuvens. Enfim).

Logo, afastamos da luta mulheres que também são oprimidas, mas que por possuir determinadas doutrinas, segregam-se de uma luta que sempre teve por objetivo a sororidade.

O resultado disso não é "semear ódio com mais ódio", como pregam os valores cristãos. O resultado disso é como o impacto de uma eleição. Numa Marcha Feminista ofenderam católicos, logo, as católicas não se sentirão representadas e se afastarão da luta política, pelo menos, nessa em questão.

Embora o valor de uma santa quebrada não seja o mesmo que o de milhares de pessoas quebradas, mortas ou feridas pelo machismo nosso de cada dia, toda a dedicação pra trazer "pro nosso lado" mulheres católicas, evangélicas ou atéias pode ter sido jogado por água abaixo. A política tem um preço. As palavras tem peso. A mídia vai sempre procurar um motivo estúpido pra desestabilizar a Marcha. E mesmo que um crucifixo seja anatomicamente confortável e não faça mal à saúde no caso de uma masturbação como a que fizeram, é essa "ofensa" que impedirá que muitos católicos apoiem nossas convicções. 

(Não que eu espere ser apoiada por eles. Mas trazer cada vez mais mulheres para o feminismo e fazê-las perceber que vivem numa sociedade patriarcal e machista e devem lutar contra ela, é um feito memorável.)




“O preço que estamos pagando por não enfrentar é alto demais. Cada vez mais vemos pastores e padres invadindo o Estado. Cada vez mais abaixamos a cabeça e dizemos “ó, mas eles tem o direito de estar“. Como se não soubéssemos o que eles fazem quando tem o Estado nas mãos. Ao invés de ficarmos dizendo sem parar que não quebraríamos santa, está na hora de dizer que cagamos e andamos se uma santa foi quebrada.“




Fonte: Indiretas de satã (Facebook)

Não lembro quando foi a primeira vez que fui à Marcha das Vadias.

Mas era um dia quente. Lembro sim, de uma imensa aglomeração de mulheres nas suas mais variadas características: negras, brancas, amarelas, ruivas, loiras, morenas, de cabelo curto, raspado, moicano, de peitos de fora, de sutiã, de braços erguidos. Todas tão diferentes e com uma coisa em comum: um sorriso no rosto inacreditavelmente esperançoso. Era um sorriso que transpirava o calor daquele dia. Cada gota que caía era como um gole de água pura pra mim: limpava meu organismo, escorria minha dor. Eram mulheres que irradiavam alegria e nem precisavam competir com o sol, pois eram parte dele. Iluminaram meu dia.
De repente me vi peregrinando atrás daquela multidão colorida. Meus passos desajustados não sabiam por onde percorrer, mas eu seguia o barulho do bumbo, dos instrumentos improvisados, daqueles tambores que ressoavam iguais as batidas do meu coração. Bum, bum, bum! E a cantoria animava, aumentava. Parecia uma onda: comecei a cantar junto, a correr junto, a pular, a dançar. Não conhecia ninguém mas me puxaram pela mão e me senti acolhida. Olhava em volta e aquilo era lindo demais. O que pode ser mais bonito do que mulheres dançando pelos seus direitos?


Foto: Autoria própria. "Um bilhão que se ergue - SP"


MAS OQ é a Marcha das Vadias?

"A Marcha das Vadias denuncia publicamente a violência sexual e de gênero, e surgiu em resposta a atitudes machistas, inclusive institucionalizadas, que maltratam, estigmatizam e oprimem meninas e mulheres cis e transexuais - corpos femininos e feminizados - e que ainda sugerem que as vítimas de estupro foram provocadoras de seu próprio ataque. Além da luta pelo fim da violência sexual e de gênero, a Marcha das Vadias do Rio deste ano também pontua outras questões de extrema importância para as mulheres como a Laicidade do Estado, a Descriminalização das Mulheres e Legalização do Aborto, a Regulamentação da Prostituição – Projeto Gabriela Leite, a sanção pela presidenta Dilma da PLC 3/2013 e contra o Estatuto do Nascituro." (Fonte: Marcha das Vadias - RJ)


MAS POR QUE das Vadias? Que horror, vadia não é feio?

Não. Ao contrário do que as páginas do Facebook insistem em compartilhar, não é feio ser vadia. O termo "vadia" oprime as mulheres desde tempos imemoriais, pois é um estereótipo em forma de xingamento que insiste em determinar ou cagar regra  sobre como deve ser seu comportamento sexual. Você, mulher, é livre para agir e usar seu corpo como bem entender. Essa limitação (vindo geralmente de homens), de que "mulher que faz sexo com muitos caras é vadia", "mulher que sai de saia curta é vadia", é uma forma de oprimir e desrespeitar seus direitos. Já percebeu que um cara sem camisa foi naturalizado como "uma atitude normal"? E só porque você tem peitos, não pode? E um cara que transa com várias, não é considerado fodão? Por que uma mulher não poderia? Bem, buscamos uma igualdade de gêneros real, e não historinhas. Por isso mulheres vadias de peitos de fora são lindas e merecem tanto respeito quanto qualquer outra.

Foto: Reprodução do G1. "Marcha das Vadias - RJ"

Desde a última vez que participei de uma Marcha, muita coisa aqui dentro mudou. O feminismo abre portas, esclarece dúvidas, acolhe sofrimentos, fomenta debates e coloca pra fora em forma de luta tudo o que eu sempre acreditei: que ninguém pode dar pitaco sobre como meu corpo é ou tem que ser. Sobre que roupa eu posso ou não vestir. Sobre meu comportamento ou orientação sexual.

Eu não preciso me dar o respeito. O respeito já é meu por direito.

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